CARTA-MANIFESTO EM DEFESA DE UMA MEDICINA ÉTICA, RESPONSÁVEL E BASEADA EM EVIDÊNCIAS

Não é possível admitir que, em momento tão grave para a Saúde Pública como este que atravessamos, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Médica Brasileira (AMB), entidades médicas que nos representam e que têm como dever zelar pela ética e pelo saber médico, mantenham posturas eminentemente político-partidárias e ideológicas, em frontal desacordo a princípios científicos. Assim sendo, nós, médicas e médicos brasileiros comprometidos com a ética e a ciência, dirigimos às entidades acima mencionadas esta Carta-Manifesto:

1 – CONSIDERANDO que a Pandemia de COVID-19 é o maior desafio para a Medicina e a Saúde Pública do século atual, contabilizando, até a presente data, mais de 700.000 mortes, sendo mais de 100.000 delas no Brasil;

2 – CONSIDERANDO que, apesar dos esforços empenhados ao redor do mundo, há ainda muitas incertezas sobre a fisiopatologia da doença, sobre melhores formas de prevenção e sobre o arsenal terapêutico medicamentoso eficaz e seguro;

3 – CONSIDERANDO que, neste cenário de incertezas, uma enorme quantidade de informações científicas vem sendo produzida e divulgada, por vezes apressadamente, o que pode gerar interpretações equivocadas, precipitadas e algumas vezes sensacionalistas, tornando imperativo que profissionais da saúde redobrem o cuidado, a fim de não se desviarem de princípios científicos básicos em suas condutas clínicas;

4 – CONSIDERANDO que a Pesquisa Científica obedece princípios metodológicos muito bem estabelecidos, cujo objetivo é determinar a eficácia e a segurança de tratamentos, cabendo ao profissional médico atenção e cuidado em considerar e avaliar esse conhecimento para aplicá-lo de forma adequada aos pacientes;

5 – CONSIDERANDO as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), relativas a não indicação de cloroquina e hidroxicloroquina para o tratamento de COVID-19 em pacientes com formas leves da doença ou com a finalidade de evitar a sua instalação, em função da ausência de evidências científicas de benefícios e constatação de potenciais danos à saúde do paciente, bem como a Nota Técnica da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), recomendando que seu uso deve ser circunscrito a ensaios clínicos randomizados, com acompanhamento clínico rigoroso e critérios de inclusão e de exclusão rígidos;

6 – CONSIDERANDO que, adotando princípios rigorosos na avaliação crítica de estudos clínicos e da qualidade da evidência que produzem, a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) elaboraram e publicaram Diretrizes para o Tratamento Farmacológico da COVID-19, onde afirmam que “…até o momento, não há intervenções farmacológicas com efetividade e segurança comprovada que justifiquem seu uso de rotina no tratamento da COVID-19, devendo os pacientes serem tratados preferencialmente no contexto de pesquisa clínica” e Informe N° 16 da SBI publicado em 17/07/2020, que conclui que “Diante dessas novas evidências científicas, É URGENTE E NECESSÁRIO que: a hidroxicloroquina seja abandonada no tratamento de qualquer fase da COVID-19;”

7 – CONSIDERANDO o posicionamento da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), e da Rede Unida, em ofício endereçado ao Conselho Federal de Medicina, onde se ressalta “estar cientificamente comprovado que, até o momento, não há qualquer medicamento que tenha se mostrado eficaz em ensaio clínico controlado, aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa”, destacando infrações éticas no Parecer CFM 04/20;

8 – CONSIDERANDO a Nota emitida pela ANVISA, atualizada em 10/07/2020, que destaca a inexistência de evidências sobre a eficácia e segurança da Ivermectina no tratamento ou prevenção da COVID19;

9 – CONSIDERANDO o posicionamento de instituições internacionais, como a FDA (Food and Drug Administration, EUA), NHS (United Kingdom National Health Service, UK), CDC (Centers for Disease Control and Prevention – EUA), NIH (National Institute of Health – EUA), que, a partir de rigorosa análise das evidências científicas disponíveis, passaram a não autorizar ou não indicar o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19, restringindo o emprego desses fármacos somente no contexto de pesquisas clínicas controladas e contraindicando o uso de antibióticos de forma profilática ou em tratamentos precoces, desconhecendo qualquer eficácia do uso da Ivermectina, sais minerais ou vitaminas para abordagem farmacológica da COVID-19;

10 – CONSIDERANDO que todas as entidades, acima relacionadas, observam em suas decisões os resultados de estudos clínicos publicados nas principais revistas científicas internacionais de saúde, como The New England Journal of Medicine, The Lancet, Journal of American Medical Association e The British Medical Journal;

11 – CONSIDERANDO que, com base nestes posicionamentos fundamentados em resultados de pesquisas clínicas, conduzidas de forma séria e responsável, organizações e grupos médicos condenam, com veemência, a adoção de protocolos de tratamentos precoces da COVID19 por gestores municipais, planos de saúde e outros órgãos públicos, assim como a distribuição do assim chamado “kit contra a COVID-19”, onde se inclui drogas como Ivermectina, Cloroquina ou Hidroxicloroquina, Nitazoxanida, Azitromicina, sais minerais e vitaminas em diferentes combinações;

12 – CONSIDERANDO que mais de 80% dos pacientes com COVID-19 terão somente sintomas leves a moderados, independentemente de qualquer tratamento prescrito no início da doença, indicando que médicas e médicos brasileiros, comprometidos por dever de ofício com o princípio hipocrático “Primum non nocere et in dubio abstine”, devem se abster de prescrever tratamentos precoces, cuja segurança e riscos associados ainda não estão totalmente esclarecidos;

13 – CONSIDERANDO que os municípios, com verba limitada para a Saúde e, especificamente, para o enfrentamento da pandemia de COVID19, devem adotar a promoção de ações de reconhecida eficácia científica na prevenção da transmissão da doença e abster-se de realizar gastos públicos na compra de medicamentos dos quais não há evidências científicas de sua eficácia, em detrimento à aquisição de medicamentos, insumos e aparelhos para UTI, que podem sabidamente salvar vidas;

14 – CONSIDERANDO que a existência de protocolos terapêuticos para COVID-19, desprovidos de evidências científicas e sua adoção, em larga escala, afronta o Código de Ética Médica, que reiteradamente afirma que o caráter e o compromisso com a ciência devem reger a profissão médica, o que fica explícito nas seguintes citações:

“Princípios Fundamentais:

II – O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.

V- Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente e da sociedade.

XXI- No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos, por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas;

Direitos dos Médicos:

Capítulo II: indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente;

Capítulo III – Art. 20: É vedado ao médico: Permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do financiador público ou privado da assistência à saúde, interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da sociedade”;

15 – CONSIDERANDO o que prevê o Código de Ética Médica no que se refere à Propaganda Médica:

“Capítulo XIII, Art 112 – É vedado ao Médico: Divulgar informação sobre assunto médico de forma sensacionalista, promocional ou de conteúdo inverídico;

Capítulo XIII , Art 113 – É vedado ao médico: Divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente”;

E o que consta no Manual de Publicidade Médica (Resolução do CFM 1974/11) em seu Art. 3º :

“É vedado ao médico:

d) Permitir que seu nome seja incluído em propaganda enganosa de qualquer natureza;

e) Permitir que seu nome circule em qualquer mídia, inclusive na internet, em matérias desprovidas de rigor científico

f) Fazer propaganda de método ou técnica não aceito pela comunidade científica;

k) Garantir, prometer ou insinuar bons resultados do tratamento”;

16 – CONSIDERANDO que a propaganda massiva, nas mídias e redes sociais, de tratamentos sem eficácia comprovada cientificamente, promovida e veiculada inclusive por médicos, em grave ofensa ao que reza o Código de Ética Médica e o Manual de Publicidade Médica, bem como a adoção de protocolos de profilaxia e tratamento precoce de COVID-19, por alguns municípios, planos de saúde e hospitais da rede privada, têm o potencial de constranger médicos a adotarem estes tratamentos, a despeito de suas convicções e das melhores evidências científicas, ferindo, portanto, a autonomia médica;

17 – CONSIDERANDO que a fiscalização do cumprimento das normas estabelecidas no Código de Ética Médica é atribuição dos Conselhos;

18 – CONSIDERANDO a indiscutível importância de se preservar a autonomia médica, incluindo-se a possibilidade de prescrição de tratamentos fora de sua indicação aprovada (off-label), desde que esta seja uma decisão individual do médico em cada caso específico, esclarecendo seu paciente dos possíveis benefícios e riscos, compartilhando com ele a decisão e realizando monitoramento próximo da sua evolução clínica, prática essa que em muito difere da prescrição de “combos” pré-estabelecidos ou da distribuição indiscriminada de “kits” de medicamentos;

19 – CONSIDERANDO que a preservação da autonomia do profissional não pode ser colocada acima da ciência nem dos valores éticos;

20 – CONSIDERANDO que o estímulo ou cumplicidade das entidades médicas em relação a tratamentos desprovidos de rigoroso embasamento científico, durante a pandemia de COVID19, abre perigoso precedente para utilização na medicina de práticas médicas empíricas, experimentais ou mesmo do charlatanismo puro e simples, com gravíssimas consequências para toda a categoria médica e a sociedade;

As médicas e médicos abaixo relacionados solicitam ao Conselho Federal de Medicina (CFM) e à Associação Médica Brasileira (AMB):

I – A imediata revisão do Parecer 04/2020 do CFM e da Nota de 19 de julho de 2020 da AMB, até que melhores evidências científicas de efetividade e segurança dos medicamentos, ali elencados, estejam disponíveis;

II – Apoio às sociedades científicas brasileiras, aos membros de sua direção e aos seus associados que, a despeito de seu empenho contínuo na busca das melhores formas de enfrentamento à pandemia de COVID 19, dentro de princípios éticos e científicos rigorosos, vêm sofrendo calúnias e ataques pessoais;

III – A identificação e apuração de infrações ao Código de Ética Médica por parte de médicos que, nas mídias e redes sociais têm usado de sua profissão para promover ou incentivar tratamentos desprovidos de respaldo da comunidade científica nacional e internacional, com punições cabíveis;

IV – Posicionamento firme contra Protocolos de Tratamento Precoce da COVID-19, estabelecidos por alguns municípios e hospitais, sem amparo nas melhores evidências científicas, constrangendo médicos a utilizá-los, a despeito de suas convicções;

V – Intervenção na distribuição de medicamentos de forma isolada ou em “Combos” ou “Kits”, sem receita médica, para tratamento da COVID-19;

VI – Incentivo público e amplo às medidas profiláticas, amplamente amparadas pelas melhores evidências científicas, tais como isolamento social, uso de máscaras e medidas de higiene.

10 de agosto de 2020

ASSINATURAS

No dia 04 de setembro de 2020, a ABMMD, núcleo de SP, entregou a carta manifesto na Associação Médica Brasileira.

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